O conceito de racismo é indispensável para a construção de raça e sua relação com alguns fenômenos sociais, políticos e econômicos, como o nacionalismo, o imperialismo e o etnocentrismo, dentre outros. Porém, o conceito de raça foi ressignificado ao longo da história e de sua relação com o conceito de cultura, diferença cultural, “pureza racial e cultural”, havendo por trás desses conceitos um medo da miscigenação. Assim,
[...] se por um lado, a negação da assimilação e da mistura reitera um racialismo mais evidente, uma forte necessidade de distinção entre os grupos, por outro lado, a miscigenação, nas concepções nacionalistas, aparece como ideal das sociedades e é defendida como forma de superação das diferenças e de homogeneização do “corpo social”. Nessa visão, a unidade nacional é fruto da fusão ou coincidência entre cultura e raça, condição para se superar uma diversidade inicial, ou seja, quando interna à nação, a diferença é temida e indesejada. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 12)
O século XIX trouxe uma concepção pseudocientífica do racialismo, marcado por diferenças físicas e hereditárias que assinalam ao mesmo tempo diferenças morais e culturais entre os seres humanos. Esta teoria de hierarquização racial baseada em critérios biológicos justificou as ações coloniais e/ou de extermínio de sociedades ditas inferiores. Como exemplo, cito o extermínio dos astecas pelos espanhóis, justificado também por motivos econômicos. Neste caso, porém, o extermínio não estava baseado nas concepções do racismo científico que surgiu apenas no século XIX.
Outra teoria entende o racismo como uma derivação do etnocentrismo, ou seja, o racismo tem origem na valorização de determinadas culturas ou grupos tidos como superiores a outros.
O racismo, nessa visão, seria apenas um modo específico do etnocentrismo de julgar o “outro” a partir da aparência e hierarquizar grupos humanos pela distinção racial. Nessa teoria, o racismo aparece como algo naturalizado, posto que é apenas um tipo histórico de um modo universal de julgar e agir com relação à “diferença”. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 14)
Uma terceira concepção de racismo considera-o como um fenômeno específico da modernidade, construído a partir do afastamento da religião como única maneira de explicar e classificar o mundo, a partir do Iluminismo no século XVIII.
Heilborn, Araújo e Barreto destacam que apostam na concepção histórica do racismo, compreendido como um fenômeno de longa duração e o conceito social de raça, que independe do fundamento racionalista da ciências biológicas.
A concepção de racismo enquanto fenômeno histórico se estabelece a partir da discussão entre o relativismo e o universalismo. Tal concepção derruba a noção de direito natural, isto é, dos direitos inalienáveis inerentes à condição humana, ao mesmo tempo que consolida a noção de indivíduo. Entretanto, tal concepção procura também estabelecer uma distinção ente os animais e os seres humanos, além de estabelecer a superioridade humana e, consequentemente, justificar a dominação dos animais ditos irracionais. Outra vertente baseada no debate entre o relativismo e o universalismo deteve-se na posição da superioridade das sociedades européias em relação às demais. Assim,
O universalismo supôs haver critérios universais para o julgamento moral, o que significa a superioridade das sociedades européias sobre as outras., inferiores ou atrasadas em suas crenças e costumes. Já o relativismo defendeu que a cultura (ou “costume”, como se dizia na época) é constitutiva da humanidade e, assim, diante de tamanha diversidade, não haveria critério possível para julgar outras culturas, tendo como base a sua própria. Se a crítica apontada aos universalistas era o constante abuso do etnocentrismo ao olhar as outras sociedades, a posição relativista incorria no extremo de, ao defender que as sociedades humanas não poderiam ser “medidas”, tornar impossível a construção de uma base comum. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 20-21)
O conceito de raça operou nas realidades e definiu políticas, ao mesmo tempo que assumia significados biologizantes e essencialistas no processo histórico. Com a descoberta das Américas, as teorias bíblicas do monogenismo, que pregam a descendência única da humanidade desde Adão, foram abaladas. Os europeus se depararam com novos povos com costumes e culturas diversos, o que reavivou as teses de pluralidade da origem humana. Entretanto, a entrada dos (as) indígenas do universo da humanidade livrou-os (as) da escravidão, o que não aconteceu com os (as) negros (as), tidos (as) como inferiores e cujas características eram taxadas de animalescas.
Outras teses poligenistas mais afastadas das justificativas religiosas sobre a divisão desigual da humanidade, propunham origens distintas dos diversos povos, baseados nas classificações por tipo e aparência, que era o critério adotado na biologia então nascente. A escravidão passou a encontrar justificativa na inferioridade dada pela cor, associada à moral e à capacidade intelectual do (a) negro (a), aproximada da animalidade. A concepção racial aqui, embora não científica, já instaura uma divisão dentro da humanidade que se hierarquiza pela proximidade de uns (umas), mais que outros (as), ao mundo animal. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 30)
Entre os filósofos iluministas, a negação do monogenismo produziu teorias sobre a hierarquização biológica dos diferentes grupos humanos. Ao mesmo tempo, a aceitação do monogenismo impôs ao racismo a hierarquização das raças baseada na degeneração. Entretanto, o monogenismo imperou. De acordo com essa teoria, “embora a humanidade seja uma, as diferenças raciais determinariam as desigualdades na mora (ética), na beleza (estética), na capacidade de progredir (perfectibilidade).” ( HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 31)
A construção da noção de raça e de racismo no século XIX deriva de dois processos: a consolidação do Estado nacional na Europa e as relações intensificadas entre os povos europeus e outros povos na era contemporânea imperialista. O Estado nacional surge a partir da necessidade em buscar origens de uma nação no passado, conseguindo, desta forma, a legitimidade de uma nação diante de grupos ou sociedades que se pretende conquistas e unificar. Tal unificação tem um caráter político, cultural e social. Há dois modelos principais de Estado-Nacional:
Um que baseia seu pertencimento por meio do pressuposto de uma origem comum (fundamento ético de nação) e outro que declara o funcionamento da nação pela lealdade dos (as) cidadãos (ãs) a um aparato jurídico-territorial (fundamento civil de nação, cujo símbolo está na ideia de contrato social). [...] Nessa base, o étnico enquanto origem comum de um povo se confunde com o racial, no sentido de perceber a origem como uma “natureza” da nação. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 36-37)
Um dado relevante refere-se à etimologia da palavra “raça”, em que podem ser encontrados termos como linhagem ou cepa, que levam à relação entre raça e grupo de descendência, povo. Assim, segundo o nacionalismo de base étnica, “a nação possuía um caráter moral comum, ao mesmo tempo natural e cultural. Era baseada no parentesco, na ideia de sangue, mas também na partilha de uma língua comum.” (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 37).
Em oposição ao determinismo racial, que preconizava a influência do clima ou do ambiente nas características ou degenerações das diferentes raças, surge a ciência biológica orientada por características morfológicas determinantes da moralidade e das capacidades dos sujeitos pertencentes a determinadas raças. “Para demonstrar a inferioridade racial de grupos não brancos, chegou-se a classificações tipológicas baseadas em características fenotípicas dos indivíduos. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 41)
Uma outra concepção de raça está baseada no Darwinismo Social. De acordo com o sociólogo inglês Herbert Spencer, o progresso humano tem como base a hierarquia racial.
As teorias que vieram a ser conhecidas por darwinismo social procuravam uma aplicação no mundo social das teorias darwinistas sobre adaptabildiade, sobrevivência e evolução das espécies, que na teoria original se restringia ao mundo natural. Introduz-se a ideia de “luta pela vida” dentro de uma mesma espécie que compete pelos mesmos recursos, os quais são escassos. Assim, os diferentes grupos humanos não apenas se desenvolveriam por intermédio da adaptabilidade ao meio, mas também pelo conflito, a partir da qual os (as) mais aptos (as) ou fortes sobreviverão ou subjugarão os (as) outros (as). (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 46)
Com isso, justificava-se todo tipo de subordinação e subjugação de uma raça considerada superior sobre outra considerada inferior, seja pela sua pobreza, seja pela incapacidade inata.
Em 1951, foi publicada a 1ª Declaração sobre Raça, que negou qualquer relação entre características físicas e atributos morais ou intelectuais. Foi também preconizada a mudança do termo raça para etnia, porém a mudança do termo não significou mudança de significado.
Cultura, em suas diferentes concepções, foi pensada por vezes mais como um conjunto de traços, crenças e costumes ordenados de forma estática do que como uma estrutura dinâmica que se transforma pelo processo histórico. Assim, cultura assimilou a mesma concepção naturalizada de raça, como conjunto de caracteres visíveis e hereditários dentro do agrupamento humano. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 58)
Durante o processo de descolonização da África e da Ásia a conquista das independências dos países se deu de duas formas: pela política de concessão de autonomia e pelas lutas de independência. Ambas as formas produziram ideologias que se centravam nos seguintes aspectos: a produção de uma identidade comum africana e a formulação dessa identidade pela revalorização de suas histórias e a ressignificação de raça como um valor positivo e símbolo de luta contra o racismo.
* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- HEILBORN, Maria Luiza; ARAÚJO, Leila; BARRETO, Andreia (orgs). Gestão de políticas públicas em gênero e raça/GPP-GeR: módulo 2. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010