domingo, 27 de novembro de 2011

O Percurso do Conceito de Raça

         Após a Abolição da Escravatura, em 1888, no Brasil e com uma população formada basicamente por negros (as) e mestiços (os), o país se vê as voltas  com cidadãos (ãs) antes sujeitos sem direitos (escravos/as) e com novas demandas. Ao mesmo tempo, pairavam sobre o país as teorias racistas oriundas da Europa que condenavam o futuro de um país mestiço como o Brasil. Tais teorias apresentavam concepções hierarquizadas e biologizantes das raças, construídas na virada do século XVIII para o XIX.  O conceito de raça surgiu no século XVI: “[...] raça é um conceito que surge primeiramente no século XVI e era utilizado para identificar um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem comum.” (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 71)
          Assim, considerando tais concepções as pessoas brancas eram consideradas superiores às pertencentes a outras raças e a miscigenação  era algo que enfraquecia os grupos, sendo estes considerados como degenerados. De acordo com as autoras:


No contexto do século XIX, raça era tida como uma categoria biologizada, na qual as diferenças raciais eram dadas de forma ontológica, ou seja, cada raça possuía uma natureza própria que a diferenciava das demais de forma irredutível. Em outras palavras, não havia liberdade individual dentro das premissas raciais; as características psicológicas, biológicas, sociais e até de caráter estavam submetidas às características que definem o grupo, de modo que o indivíduo estava submetido às características (boas ou ruins) de sua raça. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 12)


         A partir deste contexto, o país estaria condenado ao fracasso devido às suas características raciais.   Buscou-se    assim   uma   definição   da   identidade nacional “[...] entendida como o conjunto de características que nos formam como indivíduos singulares e que informam aos (às) outros (as) códigos sobre como agir e se relacionar em relação a nós.” (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 73)
          Intelectuais brasileiros   como Sílvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues buscavam a solução para o impasse de se pensar  a viabilidade da nação brasileira dentro do contexto racista do século XIX.  Ambos concordavam quanto à hierarquia entre os grupos raciais, porém discordavam em relação às conseqüências da miscigenação.
Silvio Romero considerava a miscigenação uma  possibilidade de depuração do sangue negro por meio da inserção de mais brancos (as) no território. Raimundo Nina Rodrigues, ao contrário, era contra a miscigenação, pois esta produziria seres degenerados.
            Considerando este contexto, o estímulo à imigração de europeus (eias) no Brasil  não estava ligado apenas à mão de obra mas também à ascendência racial. Com isso, favoreceu-se  à vinda de europeus (eias) e dificultou-se a imigração de chineses (as) e japoneses (as) , pois os (as)  asiáticos (as) eram menos assimiláveis que os (as) brancos (as) europeus (eias).  Inicia-se, então, o processo de embranquecimento do país.
Gilberto Freyre, autor da obra “Casa-Grande & Senzala” foi o primeiro teórico a recontar o mito das três raças, tornando positiva a contribuição da cultura negra  para a identidade nacional. Conforme expõem as autoras:

Sob a influência teórica do “pai da antropologia cultural”, Franz Boas (1858-1942), Freyre elaborou uma interpretação da formação do Brasil que deixava de lado o pessimismo racial que condenava o país e fazia uso da categoria “cultura” para entender o processo de formação da sociedade brasileira que, segundo sua análise, seria mestiça. [...] o autor evidencia e positiva as contribuições culturais dos (as) negros (as) para a formação do país. HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 12)


            A partir de Gilberto Freyre as análises baseadas no determinismo racial são deixadas para trás, bem como o ideal de embranquecimento que passa a ser substituído pelo ideal de mestiçagem. Porém, alguns críticos deste intelectual apontam que ele apenas substituiu o determinismo racial por um determinismo cultural, em que a noção de  cultura seria substituída pela noção de raça.
            No Brasil, com a ditadura de Getúlio Vargas as questões de identidade sobre a constituição do povo e cultura brasileiros começaram a ser definidos, na medida em que elementos da cultura foram  interpretados como símbolos da nação brasileira e a concepção de raça foi substituída pela de cultura.  Ao mesmo tempo, o mito da democracia racial


[...] afirmava a convivência pacífica e igualitária entre grupos raciais  diferentes; manifestações  e elementos culturais de origem negra/africana, antes repudiados haviam sido elevados à categoria de expressão da nação brasileira, constituída por um povo mestiço. Os termos que se ouviam à época eram integração e assimilação, ou seja, integração da população de origem negra e mestiça à sociedade de classes que se constituía, e assimilação dos padrões culturais mestiços.  (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 86-87)


            Porém,  os (as) ativistas negros (as) denunciavam a situação vivida pelos (as) negros (as) no Brasil. Após a Abolição da Escravatura, os (as) negros (as) não receberam nenhum tipo de  auxílio  estatal, ao mesmo tempo em que eram preteridos  no mercado de trabalho, pois havia uma preferência pelos (as)  imigrantes.
            No Brasil, sabemos que o modelo de segregação racial não foi o mesmo vivido por países como Estados Unidos ou África do Sul, porém vivemos até os dias de hoje um modelo  em que o preconceito existe de maneira velada, o que o torna mais difícil de ser combatido. Ao mesmo tempo, o mito da democracia racial também dificulta a discussão em torno da questão.
             Donald Pierson, sociólogo norte-americano, foi um dos que iniciou os trabalhos em torno das questões raciais no Brasil.  De acordo com ele:

[...] o Brasil seria uma sociedade multirracial de classes, ou seja, uma sociedade de classes na qual se podia verificar a presença de indivíduos em todos os níveis da pirâmide social. [...] também afirmava que o apego à noção de raça era pequeno e seria errôneo falar em “preconceito de raça”, o qual era extremamente difícil de ser visto e, quando ocorria, se dava de maneira isolada a partir de crenças e atitudes individuais estranhas às condições autóctones. Por outro lado, era evidente ao autor a existência de “preconceito de classe” [...] (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 89)

  
            Conforme expõem Heilborn, Araújo e Barreto:


Fica explícito o paradoxo existente à época. De um lado, representações e pesquisas que confirmavam o imaginário de democracia racial, reconhecendo as desigualdades de classe, porém negando a existência de preconceitos raciais. De outro, a relutância em aceitar a representação do Brasil como um país não branco e o desconforto com a presença de negros (as) e mestiços (as) , dando margem à proposição de medidas segregacionistas como solução para  aqueles (as) que  viam nessa diversidade um problema. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 91)


Fica evidente que a identidade do Brasil foi construída a partir do mito da democracia racial e de um racismo cordial, o que dificulta a  superação do preconceito racial na medida em que não nos assumimos como preconceituosos e não contribuímos para a formação de uma democracia efetiva.

* REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


- HEILBORN, Maria Luiza; ARAÚJO, Leila; BARRETO, Andreia (orgs). Gestão de políticas públicas em gênero e raça/GPP-GeR: módulo 2. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Questões de "raça"


O  conceito de racismo é indispensável para a construção de raça e sua relação com alguns fenômenos sociais, políticos e econômicos, como o nacionalismo, o imperialismo e o etnocentrismo, dentre outros.  Porém,  o conceito de raça foi ressignificado ao longo da história e de sua relação com o conceito de cultura, diferença cultural, “pureza racial e cultural”, havendo por trás desses conceitos um medo da miscigenação.  Assim,

[...] se por um lado, a negação da assimilação e da mistura reitera um racialismo mais evidente, uma forte necessidade de distinção entre os grupos, por outro lado, a miscigenação, nas concepções nacionalistas, aparece como ideal das sociedades e é defendida como forma de superação das diferenças e de homogeneização do “corpo social”. Nessa visão, a unidade nacional é fruto da fusão ou coincidência entre cultura e raça, condição para se superar uma diversidade inicial, ou seja, quando interna à nação, a diferença é temida e indesejada. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 12)


            O século XIX  trouxe uma concepção pseudocientífica do racialismo, marcado por diferenças físicas e hereditárias que assinalam ao mesmo tempo diferenças morais e culturais entre os seres humanos.  Esta teoria de hierarquização racial baseada em critérios biológicos justificou  as ações coloniais e/ou de extermínio de sociedades ditas inferiores. Como exemplo, cito o extermínio dos   astecas pelos espanhóis, justificado também por motivos econômicos. Neste caso, porém,  o extermínio não estava baseado nas concepções do racismo científico que surgiu apenas no século XIX.
            Outra teoria entende o racismo como uma derivação do etnocentrismo, ou seja, o racismo  tem origem na valorização de determinadas culturas ou grupos tidos como superiores a outros. 


O racismo, nessa visão, seria apenas um modo específico do etnocentrismo de julgar o “outro” a partir da aparência e  hierarquizar grupos humanos pela distinção racial. Nessa teoria, o racismo aparece como algo  naturalizado, posto que é  apenas um tipo histórico de um modo universal de julgar e agir com relação à “diferença”. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 14)


            Uma terceira concepção de racismo considera-o como um fenômeno específico da modernidade, construído a partir do afastamento da religião como única maneira de explicar e classificar o mundo, a partir do Iluminismo no século XVIII.
            Heilborn, Araújo e Barreto destacam que apostam na concepção histórica do racismo, compreendido como um fenômeno de longa duração e o conceito social de raça, que independe do fundamento racionalista da ciências biológicas.
            A  concepção de racismo enquanto fenômeno histórico  se estabelece a partir da  discussão entre o relativismo e o universalismo. Tal concepção derruba a noção de direito natural, isto é, dos direitos inalienáveis inerentes à condição humana, ao mesmo tempo que consolida a noção de indivíduo. Entretanto, tal concepção procura também estabelecer uma  distinção ente os animais e os seres humanos, além de estabelecer a superioridade humana e, consequentemente, justificar a dominação dos animais ditos irracionais. Outra vertente baseada no debate entre o relativismo e o universalismo deteve-se na posição da superioridade das sociedades européias em relação às demais. Assim,


O universalismo supôs haver critérios universais para o julgamento moral, o que significa a superioridade das sociedades européias sobre as outras., inferiores ou atrasadas em suas crenças e costumes. Já o relativismo defendeu que a cultura  (ou “costume”, como se dizia na época) é constitutiva da humanidade e, assim, diante de tamanha diversidade, não haveria critério possível para julgar  outras culturas, tendo como base a sua própria.  Se a crítica apontada aos universalistas era o constante abuso do etnocentrismo ao olhar as outras sociedades, a posição relativista incorria no extremo de, ao defender que as sociedades humanas não poderiam ser “medidas”, tornar impossível a construção de uma base comum. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 20-21)


        
 O conceito de raça operou nas realidades e definiu políticas, ao mesmo tempo  que assumia significados biologizantes e essencialistas no processo histórico.   Com a descoberta das Américas, as teorias bíblicas do monogenismo, que pregam a descendência única da humanidade desde Adão, foram abaladas. Os europeus se depararam com novos povos com costumes e culturas diversos, o que reavivou as teses de pluralidade  da origem humana.  Entretanto, a entrada dos (as) indígenas do universo da humanidade livrou-os (as) da escravidão, o que não aconteceu com os (as) negros (as), tidos (as) como inferiores e cujas características eram taxadas de animalescas.

Outras teses poligenistas mais afastadas das justificativas religiosas sobre a divisão desigual da humanidade, propunham origens distintas dos diversos povos, baseados nas classificações por tipo e aparência, que era o critério adotado na biologia então nascente. A escravidão passou a encontrar justificativa na inferioridade dada pela cor, associada à moral e à capacidade intelectual  do (a) negro (a), aproximada da animalidade. A concepção racial aqui, embora não científica, já instaura uma divisão dentro da humanidade que se hierarquiza pela proximidade de uns  (umas), mais que outros (as), ao mundo animal. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 30)


            Entre os filósofos iluministas, a negação do monogenismo  produziu teorias sobre a hierarquização biológica dos diferentes grupos humanos. Ao mesmo tempo,  a aceitação do monogenismo  impôs ao racismo a hierarquização das raças baseada na degeneração. Entretanto, o monogenismo imperou. De acordo com essa teoria, “embora a humanidade seja uma, as diferenças raciais determinariam as desigualdades na mora (ética), na beleza (estética), na capacidade de progredir  (perfectibilidade).” ( HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 31)
            A construção da noção de raça e de racismo no século XIX deriva de dois processos: a consolidação do Estado nacional na Europa e  as relações  intensificadas entre os povos europeus e outros povos na era contemporânea imperialista.  O Estado nacional surge a partir da necessidade  em buscar origens de uma  nação no passado, conseguindo, desta forma, a legitimidade de uma nação diante de grupos ou sociedades que se pretende conquistas e unificar. Tal unificação tem um caráter político, cultural e social. Há dois modelos principais de  Estado-Nacional:


Um que baseia seu pertencimento por meio do pressuposto de uma  origem comum (fundamento ético de nação) e outro que declara o funcionamento da nação pela lealdade dos (as) cidadãos (ãs)  a um aparato  jurídico-territorial (fundamento civil de nação, cujo símbolo está na ideia de contrato social). [...] Nessa base, o étnico enquanto origem comum de um povo se confunde com o racial, no sentido de perceber a origem como uma “natureza” da nação. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 36-37)



            Um dado relevante refere-se à etimologia da palavra  “raça”, em que podem ser encontrados termos como linhagem ou cepa, que levam à relação entre raça e grupo de descendência, povo. Assim, segundo o nacionalismo de base étnica, “a nação possuía um caráter moral comum, ao mesmo tempo natural e cultural. Era baseada no parentesco, na ideia de sangue, mas também na partilha de uma língua comum.”  (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 37).
             Em oposição ao determinismo racial, que preconizava a influência do clima ou do ambiente nas características ou degenerações das diferentes raças, surge a ciência biológica orientada por características morfológicas  determinantes da moralidade e das capacidades dos sujeitos pertencentes a determinadas raças. “Para demonstrar a inferioridade racial de grupos não brancos, chegou-se a classificações tipológicas baseadas em características  fenotípicas   dos   indivíduos. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 41)
            Uma outra concepção de raça está baseada no Darwinismo Social.  De acordo com o sociólogo inglês Herbert Spencer, o progresso humano tem como base a hierarquia racial.


As teorias que vieram a ser conhecidas por darwinismo social procuravam uma aplicação no mundo social das teorias darwinistas sobre adaptabildiade, sobrevivência e evolução das espécies, que na teoria original se restringia ao mundo natural. Introduz-se a ideia de “luta pela vida” dentro de uma mesma espécie que compete pelos mesmos recursos, os quais são escassos. Assim, os diferentes grupos humanos não apenas se desenvolveriam por intermédio da adaptabilidade ao meio, mas também pelo conflito, a partir da qual  os (as) mais aptos (as) ou fortes sobreviverão ou subjugarão os (as) outros (as). (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 46)



            Com isso, justificava-se todo tipo de subordinação e subjugação de uma raça considerada superior sobre outra considerada inferior, seja pela sua pobreza, seja pela incapacidade inata.
            Em 1951, foi publicada a 1ª Declaração sobre Raça, que negou qualquer relação entre características físicas e atributos morais ou intelectuais. Foi também preconizada a mudança do termo  raça para etnia, porém a mudança do termo não significou mudança de significado. 


Cultura, em suas diferentes concepções, foi pensada por vezes mais como um conjunto  de traços, crenças e costumes ordenados de forma estática do que como uma estrutura dinâmica  que se transforma pelo processo histórico. Assim, cultura assimilou a mesma concepção naturalizada de raça, como conjunto de caracteres visíveis e hereditários dentro do agrupamento humano. (HEILBORN, ARAÚJO & BARRETO, 2010, p. 58)

            Durante o processo de descolonização da África e da Ásia a conquista das independências dos países se deu de duas formas: pela política de concessão de autonomia e  pelas lutas de independência. Ambas as formas produziram ideologias que se centravam nos seguintes aspectos: a produção de uma identidade comum africana e a formulação dessa identidade pela revalorização de suas histórias e a ressignificação de raça como um valor positivo e símbolo de luta contra o racismo.
           



* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


- HEILBORN, Maria Luiza; ARAÚJO, Leila; BARRETO, Andreia (orgs). Gestão de políticas públicas em gênero e raça/GPP-GeR: módulo 2. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010